sexta-feira, 16 de março de 2018

AMIGOS PARA SEMPRE

Conhecemo-nos em 74. Logo a seguir ao 25 de Abril. Apresentou-nos o pintor Júlio Gouveia. Na feira de artesanato de Cascais num sábado cheio de sol. Estava em tronco nu com um copo de vinho na mão e a comer. 
E foi assim toda a sua vida. Uma vez perguntei-lhe: Michael, a tua vida é comer e pintar, a tua vida resume-se nisso, mais em comer ou pintar?
Mais em comer, respondeu ele a sorrir, malicioso no olhar, como ele às vezes fazia!
Michael vivia em função destas duas necessidades, para ele fundamentais. Adorava pintar e adorava comer! 
Na realidade ele não sabia fazer mais nada na vida a não ser isto e, fazia-o muito bem!
Pintar era para ele tão vital e tão necessário como respirar. Estava-lhe no sangue, estava-lhe na alma! 
Era visceral. Pintava exaustivamente sempre com o maior prazer que o acto de criar lhe proporcionava. Caso curioso, pintava sempre com a mão direita e comia com a esquerda. 
Nunca ligou nada à sua carreira profissional nem nunca se preocupou com a sua imagem nem com a sua promoção artística. Foi sempre muito simples e sem preconceitos de espécie alguma. Muito descontraído, fazia e conquistava amigos á primeira vista! Mas, individualistas por natureza, gostava mais de receber do que oferecer, sendo por vezes, até, um tanto egoísta.
Para ele tudo estava bem, o que era importante era viver o dia a dia. Sem grandes preocupações nem responsabilidades. Chegou mesmo a recusar alguns bons contratos que lhe dariam paz e tranquilidade económica mas, ele sempre os recusava. Nunca se quis profissionalizar nem nunca o vi zangado com ninguém.
Às vezes queixava-se mas, era quando tinha alguma "encomenda" que não lhe agradava muito pintar mas, dava-lhe jeito para o sustento da família.
Nunca foi rico nem apegado a coisas supérfluas mas, gostava de oferecer flores às senhoras.
Era rico de espírito, de vivências, de amizades, a todos tratava por tu desde a primeira hora. Adorava a noite e beber um copo com os amigos.
Sempre o conheci de pêra e bigode quichotescos que manteve toda a vida bem como um cabelo prateado e comprido. 
Simpático e com boa figura, a todos agradava com o seu sorriso e o seu charme da mistura de sangue inglês da mãe e de francês do pai. Uma mistura que assentava muito bem no nosso querido Michael, com uma loucura saudável só digna de um génio como ele.
Tão vincada e forte foi a sua personalidade que ainda hoje, não nos habituamos à sua perda.
Às vezes dá-nos a sensação de que foi fazer uma viagem e que vem daqui a um bocado...
Ainda estamos à espera dele...
Não resisto em contar um pequeno episódio que se passou há largos anos numa fábrica da zona industrial de Ílhavo que o Dr. Mário Soares, na altura Presidente da República veio inaugurar, precisamente a 12 de Julho de 1986. Lembro-me dele ter chegado à fábrica de helicóptero.
Para a inauguração preparei uma exposição com cerca de 30 telas sobre o poeta Fernando Pessoa que se intitulava "Retratos polémicos do Fernando imagens do impossível", com os títulos dos quadros, tais como: "Ventríloquo", um menino ao colo de Pessoa; "Fernando, o definitivo encontro", o mostrengo atacando o homem do leme; "Heterónimo secreto"; "O outro lado do Fernando"; "O meu outro eu", Fernando Pessoa vestido de travesti e com ligas pretas; "Fernando ao espelho", Fernando Pessoa de frente a um espelho com uma estola ao pescoço, entre outros quadros.
Obras que o Dr. Mário Soares apreciou com muita calma, uma a uma, comigo como cicerone, seguido pelo pintor, pelo Presidente da fábrica e por um larguíssimo leque de convidados.
Culto e conhecedor como é de artes plásticas, Mário Soares que tinha chegado à urna semana de Londres de uma visita ao atelier da pintora Paula Rego, perguntava por onde tinha andado tal pintor que não o conhecia, mas que tinha urna obra tão boa, tão interessante e com tanta qualidade?
Michael respondeu: tenho andado por aí a pintar. Agora estou aqui em Aveiro há uns meses a preparar esta exposição dos Pessoas. Continuamos a visita com grande dignidade e muito interesse de ambas as partes.
Mário Soares chegou mesmo a interessar-se por uma obra, precisamente "O meu outro eu". Fez uma boa referência a ela criticando-a positivamente pelo arrojo que o artista teve ao criar tal obra, mostrando-se interessado em ficar com ela.
Eu, nessa altura, dei uma cotovelada ao Barrett e disse-lhe: oferece-lha. Imediatamente o Michael diz-me ao ouvido: ele que a compre que é muito rico!
E lá seguimos adiante, com este aperitivo da exposição, para o almoço que a fábrica ofereceu aos seus convidados onde estavam figuras públicas, camarárias, políticos, governantes, entidades oficiais, religiosas e civis, empregados fabris e muitos convidados. Após um belíssimo almoço muito bem servido e muito bem regado, o Presidente da fábrica veio ter comigo para levar o pintor ao Dr. Mário Soares pois, este gostaria de conversar um bocado com ele. Lá fui eu, eufórico e nervoso, a correr desencantar o Michael que estava já a digerir o belo almoço com que se banqueteou.
Olha, o Mário Soares quer falar contigo!
O que é que ele quer? Se calhar quer comprar-me o quadro!
Mas, não era nada disso. Simplesmente Mário Soares como uma grande personalidade da cultura portuguesa, queria rnais uma vez dar os parabéns ao pintor pela magnífica exposição que tinha visto.
Após alguns minutos de conversa, com Mário Soares sentado e Michael de pé, diz-lhe aquele:
Gostava muito de o convidar a visitar a minha colecção de arte! Ao que Michael ingenuamente retorquiu: Agora não posso estou em Aveiro sabes?
Pode ser um dia qualquer, quando tiveres tempo, diz-lhe Mário Soares.
É pá, olha, também não posso porque ando sempre teso e também não sei lá ir à tua casa!
Não faz mal, eu mando o meu motorista buscar-te.
Assim já pode ser. E tu, tens muitos quadros?
Nesta altura, Mário Soares levanta-se e inteligente como é, e vendo que estava diante de uma personagem muito especial, também o tratou por tu e disse-lhe:
Dá-me o teu telefone que depois eu ligo-te.
Mário Soares, rindo-se e bem disposto, deu-lhe o braço  e lá foram os dois pela fábrica fora...
De braços dados e a conversarem como dois velhos amigos!
Michael Barrett foi um dos meus melhores amigos. E foi-o durante muitos anos, precisamente três décadas. Há irmãos que não se dão tão bem!
Se tivemos zangas? Se nos chateamos muitas vezes? Tantas e tantas que até lhe perdi a conta. Mas, tudo voltava ao normal passado uns tempos. A verdadeira amizade prevalece com o perdão mútuo. Com o amor fraterno que nasce destas longas e sãs amizades!
Mas Michael não morreu...
Simplesmente arrumou a paleta e os pincéis.
Micahel Barrett iniciou a sua longa viagem, a viagem da eternidade...

José Sacramento
Galerista e Marchand, Abril, 2009

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Michael Barrett, Um Génio Marginal